Al-Faghar (3)

30 de Outubro de 2018

A oferta de Afonso I 


Ibn Qasi prometeu e cumpriu. Os seus muridin participaram na tomada de Santarém aniquilando a guarda no interior das muralhas e franqueando as portas da fortaleza às tropas cristãs. Santarém caiu com o mínimo de sangue derramado. Seguiu-se Lisboa onde a situação foi bem mais complicada devido à interferência dos cruzados que, vindos do norte da Europa em trânsito para a terra santa, contra a vontade das tropas portuguesas se impuseram no cerco, roubaram, violaram e mataram indiscriminadamente após a tomada da baixa da cidade. Os guerreiros do Mestre sufi, embora em pequeno número, cumpriram a sua missão no sector oriental, nas muralhas do alcácer. E Lisboa caiu também na posse de Afonso I de Portugal. 

Na sequência destas victórias e logo após a tomada pacífica de Sintra e da entrega das restantes fortalezas árabes ao longo da linha do Tejo, delegações Templárias foram enviadas a Évora, a al-Batun (Viana do Alentejo) e a wadi-Mihrab (Odemira) para agradecer a participação muridin e prestar contas do sucedido em Lisboa. Ibn Qasi compreendeu e aceitou as explicações reafirmando a sua vontade de continuar a cumprir o pacto secreto com Afonso I. Propôs até aos cavaleiros do Templo que estabelecessem discretamente um posto avançado em al-Batun sob sua protecção se assim o desejassem. Os Irmãos aceitaram, criando ali uma pequena "Comenda" secreta em pleno coração do Alentejo muçulmano. Ibn Qasi também convidou Afonso I a encontrar-se pessoalmente com ele em local à escolha do monarca português. Em território cristão inclusive, se assim o entendesse. 

Afonso I de Portugal tinha uma personalidade invulgar. Era nobre, bravo, inteligente estratega e muito temerário. Arrojado até, como se mostra na seguinte narrativa: 

"Dom Afonso agradado com Ibn Qassi mandou-nos preparar para oferta um cavalo branco puro lusitano um escudo e uma lança um peitilho heráldico e um anel com os símbolos místicos comuns à cavalaria espiritual para selar em definitivo o pacto entre ambos. Albur foi o lugar combinado para o encontro. Éramos ao todo sete cavaleiros encarregues de entregar pessoalmente a oferta simbólica ao Mestre Sufi. Tendo recebido deste o prometido salvo-conduto para circularmos em paz por todo o território sob o seu domínio, partimos para terras do sul..." 

Vestígios do Alcácer do castelo de Alvor 

A delegação era composta por quatro cavaleiros Templários e três cavaleiros do rei. Todos viajaram sob escolta muridin até que se apresentaram discretamente ao alcaide de Alvor que os conduziu à presença de Ibn Qasi. Este, que já os esperava, recebeu-os com todas as honras no alcácer da cidade (1). Mas continuemos a narrativa... 

"...à chegada desembarcámos num pequeno ancoradouro de pedra (2) onde nos esperava o Alcaide em pessoa acompanhado de alguns nobres locais e uma pequena escolta. Trazendo o cavalo e as oferendas fomos conduzidos por um passadiço de madeira que percorria todo o fosso junto da muralha norte (3) até às portas do nascente (4). Por três dias e três noites ali ficámos albergados no alcácer com todas as honras e com toda a sorte de entretenimentos tendo por anfitrião o próprio ibn Qassi. Antes de partirmos lavrámos em conjunto o documento do pacto de irmandade e recebemos das mãos do Mestre sufi algumas ofertas simbólicas da futuwah (5) entre elas uma saif (6) com os selos de Afonso I e de Ibn Qassi nela gravados. Às palavras de Ibn Qassi que preferira tê-la entregue pessoalmente ao rei Afonso; respondeu um dos cavaleiros do rei ali presentes que 'tal acabara de ser feito'. O Mestre sufi levantando-se abraçou emocionado o cavaleiro reconhecendo-o. Era el-Rei Afonso de Portugal..." 

Alvor teria tido um fosso natural como este que a rodeava a norte 


Vestígios da estrutura do embarcadouro (lado norte) 
 

O documento lavrado em ambos os idiomas e selado com os respectivos símbolos, foi assinado pelos presentes. Da parte dos nossos constam as seguintes assinaturas: 

(Testemunhando pela Ordem do Templo) 

                            Rodrigo Viegas
                            Gonçalo Anaya
                            Martim Gonçalves
                            Pedro Gaudins

(Conferindo pelo Rei) 

                            (Pero) Afonso Monis
                            Pero Pais
                            Gonçalo de Souza

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(1) - Alvor na época era uma cidade com cerca de 5.000 habitantes. Para além da Medina (cidade velha) o resto da cidade prolongava-se para norte até onde são hoje os Montes de Alvor, protegida por uma cerca amuralhada. 
(2) - Ainda existem vestígios desse ancoradouro numa reentrância da ria com ligação por uma rampa à actual igreja matriz. 
(3) - Este fosso era uma falha natural, preenchida pelas águas da ria, que rodeava toda a zona norte da cidadela muçulmana transformando-a numa espécie de ilha. Começava no dito embarcadouro e prolongava-se até à Porta do Sol, a nascente, onde hoje é o rossio de Alvor. 
(4) - Portas do Nascente ou Porta do Sol, que ficava no lado Oriental da cidadela; a entrada principal para quem vinha de Burjmunt (Portimão). Era servida por uma ponte (já desaparecida) que atravessava a Ribeira dos Moinhos. As outras duas entradas eram a Porta da Serra que ligava a norte o resto da cidade por uma ponte de madeira sobre o fosso e a Porta do Mar que dava directamente para a praia da ria. 
(5) - Futuwah; cavalaria espiritual islâmica. 
(6) - Saif; também chamada cimitarra. Espada de lâmina curva utilizada pelos guerreiros muçulmanos. 

Fr. João do Paço 
cronista-mor

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