A Flor de Damasco
" Na lua de Sâfar um poder chegou a mim
que não me foi nem doce nem amargo..."
Dizia Ibn Qasi nos finais de Agosto de 1151 contemplando-a pela última vez no Salão dos Poetas do Palácio Xarajibe (1) pressentindo já a vingança dos seus inimigos. Pouco depois era assassinado à traição por partidários dos integristas almôadas na alcáçova do seu palácio em Silves. No mês de Jumâda, tal como o Mestre sufi havia profetizado:
" ...em Jumâda por fim terminará
o tempo que a loucura apagará."
Com a morte de Ibn Qasi foi interrompida a presença da Ordem dos Cavaleiros Templários Portugueses em terras do Garb al-Andaluz. Foram precisos mais 38 anos para que regressássemos a estas paragens, não como aliados mas como conquistadores. Em 1189, já no reinado de D. Sancho I, Silves foi tomada em condições semelhantes à de Lisboa.
"Vindas do norte da Europa (da foz do rio Escalda) começam a concentrar-se em Lisboa as naus dos cruzados que iriam formar a frota cujo destino era, uma vez mais, a terra santa. O rei D. Sancho I aproveitando esta força militar em trânsito, propõe a sua colaboração no ataque à cidade de Silves. Antecipando-se, 55 naus nórdicas zarpam à socapa uma semana antes e vão atacar Alvor de surpresa provocando um autêntico massacre na cidade, matando perto de 5.000 pessoas não perdoando a sexo nem idade. Os poucos habitantes que conseguem sobreviver refugiam-se em Silves que prepara a suas defesas. No entanto, a força naval dos cruzados parte para o Oriente saciada de sangue e nutrida do saque. Silves relaxa e baixa a guarda pensando que o pior já passara. Mas o pior ainda estava para vir..."
Depois da saída de Lisboa, a nova frota composta agora de 37 naus grandes e muitas outras perfazendo mais de uma centena, passou frente às ruínas ainda fumegantes de Alvor e estacionou na foz do rio Arade. No dia 21 de Julho de 1189 iniciaram os primeiros ataques às ameias do castelo de Silves. A 29 de Julho já se encontravam concentrados no local os efectivos portugueses constituindo um significativo reforço militar terrestre. O exército do Rei ajudado pelas alas das Ordens Militares de Santiago, Templo, Avis e Hospital lançaram-se às muralhas viradas a norte. A sul os cruzados redobraram os ataques. Para os mouros sitiados, abriram-se as portas do inferno...
"No domingo, dia de S. Felicíssimo e Agapito (6 de Agosto) nós os Teutónicos logo de madrugada assentámos as máquinas de assalto e uma, a que chamamos ouriço, contra o muro da Coiraça, entre duas torres, com o intento de lhe abrir brecha…"
Assalto às muralhas de Silves
Perante as constantes vagas de assalto às suas muralhas, Silves acabou por capitular nos primeiros dias de Setembro de 1189 exausta, faminta, doente, "...bradando do muro pela gente d'El Rei para tratar de entregar a cidade." A partir daqui começaram as negociações que terão sido mais difíceis entre D. Sancho e os cruzados do que com os próprios muçulmanos. O monarca português propôs que os habitantes pudessem sair da fortaleza com os seus haveres. Chegou mesmo a prometer aos nórdicos 10.000 cruzados em ouro que estes recusaram. Queriam pilhar a cidade. Ficou então assente que os infiéis sairiam da fortaleza "...somente com o que tivessem vestido, ficando El-Rei com a cidade e nós (cruzados) com o despojo que tivesse dentro." No entanto, o comportamento desta força mista de cristãos cruzados e outros, conforme o registo de um cruzado anónimo, foi deplorável. "...a nossa gente miúda, porém, descarada e vergonhosamente começou a roubá-los como quebra de convenção e a maltratá-los com pancadas, do que El-Rei de Portugal se agastou muito." Perante esta atitude D. Sancho acabou por decidir não entregar a cidade para saque apesar dos protestos dos cruzados. "...entregámos-lhe a cidade ainda recheada de riquezas, para que fizesse a partilha connosco, como cumpria a Magestade Real, havendo respeito assim ao trabalho, como ao dano que havíamos sofrido. El Rei, porém, tomando tudo para si, nada nos deixou, e por isso os cruzados, tratados tão injuriosamente, se separaram dele menos amigos do que dantes estavam."
Ficaram assim preservados muitos dos tesouros existentes na cidade, principalmente os do famoso Palácio das Varandas. E é aqui que começa a rocambolesca história da nossa Flor de Damasco, descrita como a Musa Inspiradora dos poetas árabes de Silves.
"Nenhum de nós ficava indiferente à sua beleza inspiradora, à forma feminina de tamanho natural que se adivinhava nos contornos daquela árvore de ouro puro, ofertada em bruto pela natureza tal qual a retiraram da terra mãe e depois cravejada de pedras preciosas pela mão do artista que a vestira. Era um tesouro digno do Paraíso, e que quase ofuscava o olhar indigno dos poetas..."
Como teria sido a mesquita de Silves
"Purificada" a mesquita e transformada esta em templo cristão, nomearam D. Nicolau (um clérigo flamengo) Bispo de Silves. Amigo da opulência, tratou logo de reclamar para si muitos dos objectos valiosos do Palácio das Varandas entre eles a Flor de Damasco ou Rosa de Damasco como passaram a chamar-lhe. D. Nicolau tinha um sobrinho, Theobaldo, que decidira não acompanhar a frota dos cruzados e voltar para as terras do Norte. Aproveitando a oportunidade, o bispo pediu ao sobrinho que, junto com os haveres deste, transportasse também umas relíquias mouriscas para si. E foi assim que a Flor de Damasco embarcou discretamente desaparecendo para sempre. Não chegou a terras flamengas porque, por alturas de Peniche e antes de cruzar as Berlengas, duas naus vindas do castelo da Touria (2) atravessaram-se no caminho de Theobaldo, tendo-o aliviado gentilmente do peso de tais haveres.
§
Viva Abú Bakr!
saúda por mim, asinha,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se a saudade deles
é tão grande quanto a minha.
Saúda o Palácio dos Balcões,
da parte de quem não esqueceu
a morada de gazelas e leões,
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas que lá achava
e bem estreitas cinturas...
Al-Mu'tamid
"Rosa, Flor,
de Damasco já esquecida,
na Flor da Rosa... adormecida"
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(1) - O célebre Palácio das Varandas do Castelo de Silves, com a sua monumental escadaria ladeada por leões de porcelana dourada. Situava-se na medina, a poente do alcácer e contíguo à sua muralha, nada tendo a ver com as dependências achadas recentemente junto à muralha oriental.
(2) - Castelo Templário da Atouguia da Baleia.
cronista-mor
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